segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Nível Cultural

Há alguns dias fui almoçar com meu pai, sua namorada e uma amiga deles para resolver questões de uma viagem de férias que muito anseio por fazer. Nós almoçamos, conversamos, de forma muito agradável e civilizada, quase uma refeição vitoriana. Tudo ocorria de forma normal até que num de tantos assuntos triviais de um almoço trivial se contou a história de um porteiro que havia feito um questionamento à meu pai em tom de reclamação. Ele perguntara “por que vocês me deram carne mastigada?”.

Creio que seja necessário situar melhor o contexto em que tal frase foi proferida. Já no fim do almoço havia sobrado parte considerável da refeição que eu pedira, porque nenhum dos presentes costumava comer muito. Então se cogitou a idéia de embalar para viagem para evitar o desperdício. Ao que vejo, nos dias de hoje, está meio fora de moda estragar comida. Não é politicamente correto desperdiçar se há tanta gente passando fome. Mas claro que num almoço trivial era necessário que se justificasse o motivo de se levar as sobras da refeição, já que estávamos em um restaurante considerado “fino”.

Então a namorada de meu pai começou a contar que sempre que saiam para comer fora eles pediam para embalar os restos para dar ao porteiro do prédio para jantar. Uma ação muito altruísta. Altruísmo está na moda, só muda de roupa de vez em quando. Mas então, ela contou que certa vez fora almoçar não sei onde e comeu uma carne desfiada sei lá com o quê e levara as sobras para o dito porteiro que fora reclamar à meu pai sobre porque havia recebido carne mastigada.

Até então estava tudo bem. Certo desconforto me assolara, mas nada grave. Até que ouvi da amiga a seguinte frase que entrou em meu cérebro como uma flecha. De forma vitoriana ela disse: “É nessas horas que vemos nível cultural das pessoas”. O resto daquela conversa não consegui mais ouvir. Essa frase ficou girando em minha cabeça. Não tive forçar para comentar tal afirmativa ao ver todos à mesa balançarem a cabeça em consentimento. O enunciado ainda está girando em minha mente, então resolvi exorcizá-lo com novos enunciados que não fui capaz de proferir num momento tão evoluído culturalmente.

Eu sempre cometo o erro de ver o mundo de modo “cynthiocentrado”. Mesmo sabendo que não é verdade acho que meu modo de pensar é o normal. Todos temos um pouco disso, mas poucos temos consciência do mesmo. Eu tive o prazer e a honra de crescer e ser educada em um mundo multicultural fantástico. Conviver pessoas de diversas classes, cores, credos, desejos. Nunca consegui ter uma visão homogênea da vida e creio que isso é a norma. As pessoas são diferentes, as culturas são diferentes e todas são “boas” e “belas”, como diriam os gregos, a seu modo diferente. Também leio textos teóricos maravilhosos que falam do multiculturalismo, a importância de não se pensar em culturas mais evoluídas, culturas menos evoluídas. Mas “é nessas horas que vemos nível cultural das pessoas”. Essa frase não sai de minha cabeça. Ouvir isso me pareceu uma flecha rasgando o livro das normas do meu ser. Eu sempre quero crer que todos pensam como eu, mesmo sabendo que isso é mentira. Mas ouvir isso assim a queima roupa me fez crer que eu não estava em uma refeição aos moldes da Inglaterra vitoriana, com seus modos rígidos e seus preconceitos e hipocrisias, mas que eu estava de fato em uma refeição vitoriana muito elegante e evoluída culturalmente, em que as pessoas são altruístas e fazem caridade aos culturalmente menos evoluídos. Tão pouco evoluídos que nem podem ser gratos por receber os restos de outrem.

Até agora fico me perguntando se fui a única pessoa naquela mesa a perceber que a questão que incomodava aquele porteiro não era se a carne estava mastigada ou não, mas o fato de continuamente receber os restos de uma cultura tão evoluída.

07.12.2009.